A cada dia que passa aumenta – principalmente em razão da crise econômico- financeira – o número de processos de pessoas que furtam porque estão famintas ou não conseguem alimentar a família. Fui pesquisar. São pacotes de fraldas, produtos de higiene ou uma porção de comida podem valer dias, meses e até anos de prisão no lento curso de uma Justiça abarrotada de processos. Ontem mesmo li, em O Globo, que presa em flagrante após furtar dois pacotes de macarrão instantâneo no fim de setembro, uma mulher que mora nas ruas de São Paulo há mais de dez anos, dependente química e mãe de cinco filhos, ficou detida por 13 dias. O caso, que mobilizou as redes sociais, nem foi o mais grave de uma série de histórias que se repetem ao longo dos anos e levam, por uma bagatela, pessoas mais pobres para a cadeia.
Isso incomoda e constrange e violenta todo mundo. Principalmente um advogado que lida com o tema diariamente. Veja o episódio. O desempregado C. esperou quatro anos e dois meses até que seu processo fosse extinto a pedido da Defensoria. Em 2017, ele levou dois pedaços de frango de um mercado, avaliados em R$ 4. Até então, C. não tinha passagem alguma pela polícia. Ao confessar o crime, admitiu: “Só queria matar a fome”. Não é novidade para ninguém, mas o advogado vive isso nos corredores do Fórum e na vida. Não estou falando aqui em furto de carros, que entra em outro estatística, estou enfatizando os ilícitos que poderiam se enquadrar no princípio da “insignificância penal”, pelo valor do objeto furtado e condições envolvidas no furto.
É claro que o alerta está ligado. Esses casos vão aumentar. A gente vê trabalhadores que agora estão em situação de rua pedindo o que comer. As doações estão diminuindo. Essas pessoas vão ter que fazer algo para sobreviver. Só que, sem dúvida, mais de 60% dos casos de furtos se encaixem no princípio da insignificância. Ora, a rigor, contra a fome não tem mandado de prisão. Mas, diria o leitor: se o Código Penal for levado ao pé da letra, qualquer furto pode dar até quatro anos de prisão. Há mais de 10 anos os tribunais superiores firmaram a jurisprudência de que se deve extinguir processos que envolvem valores pequenos, em que não houve uso de violência e sem grande prejuízo para a vítima. É o chamado princípio da insignificância. Pessoalmente, me incorporo à tese de que o princípio da insignificância é uma espécie do gênero ausência de perigosidade social e, embora o fato seja típico e antijurídico, a conduta pode deixar de ser considerada criminosa. E deve sê-lo, sem dúvida.