Leitor teimoso, por mais que procure não consigo me deparar com um texto no qual não haja um traço de amargura. Vire e mexe, por mais que a bola siga rolando e o passe seja limpinho, os números da pandemia afloram como se tivessem sido represados no inconsciente até aquele momento. Se não é assim, me digam… Não acredito que exista sequer uma pessoa feliz num país em que a “gripezinha” já exterminou mais de 460 mil pessoas. Num país no qual vive também um inédito acúmulo de crises: sanitária, com a pandemia; socioeconômica (com quase 15 milhões de desempregados); política; ambiental. Escrevo, agora, depois de assistir aos noticiários, nos quais o presidente afirma, categoricamente, que o Brasil vai sediar a Copa América, depois que vários países rejeitaram exatamente por causa da pandemia. Claro que se trata de uma jogada política visando a recuperar seu prestígio político-eleitoral que despencou nas últimas pesquisas. Na ditadura, Médici ia aos estádios… Sei que muitos irão aplaudir, sem pensar, no entanto, no perigo de disseminação do vírus. Sem esquecer que, segundo as autoridades sanitárias, estamos na iminência de uma terceira onda. Disse o presidente: “Já bati o martelo, a Copa América será aqui”.
Sou essencialmente um democrata. Será um erro de avaliação meu? Só hoje descobri, através de Gabriel Garcia Marques, que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem. Nem mesmo os elogios do pessoal do escritório serviram de alguma coisa. Sequer os sussurros de minha avó – “Que menino caprichoso! Esse menino ladino vai ser médico” – valeram de nada. Aquilo era, em verdade, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem de minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência. A pandemia me revelou isso. Mas, mesmo depois dessa descoberta, volto a dizer que não gostaria de morrer agora, com mais essa nova onda fatalmente trazida pela Copa América. Sérgio Bermudes, que continua citando Machado de Assis e Dostoievski, de cor, disse em entrevista à Veja, depois de tudo que passou, que não tem medo da morte, mas tem medo de perder o prazer de viver. Pense comigo, amigo leitor: se os brasileiros estão impedidos de viajar para exterior, porque somos considerados uma fonte de disseminação do coronavírus, como vamos trazer gente de fora para fazer uma grande manifestação esportiva? É mais uma tentativa inescrupulosa de tentar dizer que está tudo bem entre nós. Não, não está. Estou velho como esse, de quem sentiu o golpe das pesquisas e dos movimentos de rua contrário ao governo.