Dizer que este ano foi um ano perdido, apesar de todas as tristezas, confesso que não sinto soar completamente assim. Dramaticamente vivi a pandemia – e estou vivendo -, com mortes de amigos queridos, a enchente do rio Itapemirim com pessoas desalojadas, e por aí vai. Porém, como para tudo há uma compensação, chega o final do ano com a espetacular vitória de Biden no EUA e a derrota dessa figura estúpida chamada Trump, que, por certo, vai ser varrido, para sempre, do mundo político. Aprendi com Tancredo Neves que o processo autoritário traz consigo o germe da corrupção. O que existe de ruim no processo autoritário é que ele começa desfigurando as instituições e acaba desfigurando o caráter do cidadão. Daí a minha repulsa a Trump e seus seguidores em que nível for. Paro o texto para uma constatação. Coisa interessante o inconsciente. Depois do resultado da eleição, que comemorei muito, depois de noites de insônia com medo de uma reviravolta, acabei por dormir de cansaço. Curiosamente, sonhei com o filme “Central do Brasil”, que, afinal, retoma o projeto que fascinou o Cinema Novo: mostrar o Brasil escondido ao Brasil oficial. As personagens que partem em busca do país, dos pais ou das emoções perdidas vão revelando, no mesmo movimento, o mais íntimo de si e o mais íntimo de uma terra que amedronta e seduz. Depois da viagem, não serão mais as mesmas. A apatia converte-se em ação, a indiferença em solidariedade, e o desprezo em confiança. Como em toda bela fábula moral, Central do Brasil não se preocupa em doutrinar. Contenta-se em mostrar, sugerir e convidar a quem quiser para que vá e veja. Em seguida, a cada um segundo sua vontade e de cada um segundo sua possibilidade. Não sei se adequada ou inadequadamente, Hannah Arendt dizia que a modernidade ocidental abandonou a grandeza da Antiguidade pelo encantamento das emoções privadas. Num momento em que o público e o privado parecem ter perdido o sentido, Walter Salles conseguiu fundir grandeza e encantamento num filme terno, lírico e humanamente aberto para o mundo. Acordei, afinal, com um pouco de esperança, pensando que um dia tudo pode dar certo, apesar de nosso capitão.